Page 116 - Da Terra
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COVAS DO PÃO                                                                                                                                                         SAIBRO


                               Era  a  tormenta  das  senhas,  ou  antes  ainda.  Era,  digamos  assim,  um  temporal  de                                                      Um beijo na boca fechada do campo, as cinzas crescendo para dentro do corpo, o corpo liquescido para um jarro,

                               horrores já fermentados. Ninguém matava a fome senão por sinais de fumo que de                                                                  servido à mesa como sangue repar do em taças de prata, o vinho de Deus, o pão de Cristo, as luzes de Natal a
                               longe a longe traziam no cias de fora. Permitam-me que acene ao passado e lhe dê os                                                             piscarem no céu, fogo-de-ar  cio à extensão das estrelas e as estrelas a explodirem, todas ao mesmo tempo e em

                               bons dias, convidando-o a sentar-se neste presente amassado a recibos verdes com o                                                              sintonia com os cascos da terra, enquanto vulcões irrompem dos picos e a lava cobre as longas coxas dos vales. Aos
                               futuro entregue à sorte de cautelas e de raspadinhas. Falaram-me de outrora dizendo                                                             meus inimigos,  o trato das or gas, canteiros de ervas daninhas regadas pelo mijo dos sapos, muros grafitados com
                               que só a miséria não era então racionada, havia que chegasse para todos e todos com                                                             dedos fugi vos. Os dedos dos fugi vos largam pedaços de carne, partem as unhas nas ranhuras do saibro. E a gente,

                               ela enchiam a barriga de fragores famintos e sedes várias. Ó, não, não pranteemos                                                               amorosamente entregue aos inimigos, a gente faz uma papa do cimento, come as unhas estaladiças, rega os campos
                               copiando Maria Parda pelas ruas de Lisboa. Estamos na província, faz frio mas os pés                                                            com a lava ver da sobre as coxas dos vales corridos a vau. Uma bica de pedra talhada, ape tosos flocos de neve, a
                               estão calçados e já não há peixes no rio. Há quem morra por haver emba do contra                                                                neblina atapetando o pasto do gado. Tenho um gato de madeira a recuperar-me o calor, tenho cestos de parras que

                               fronteiras de gelo, sejamos sensíveis, tenhamos algum pudor. Aqui, apesar de tudo,                                                              dão uvas ácidas, adubo os meus inimigos com o vinagre das uvas, amo-os avinagrados, degusto-os, bebo-os de um
                               está-se dia a dia enceleirado até que num gesto repen no façam de nós qualquer coisa                                                            trago como se fossem chá verde. Electrocardiograma: celebra-se o aniversário, mas ninguém festeja o segundo
                               com proveito. Hoje frequentamos diariamente os funerais do pão, enterramo-lo no                                                                 seguinte. O segundo seguinte esconde-se num condomínio fechado, reúne-se à porta de uma esquadra abandonada

                               estômago besuntado com gordura depois de o mergulharmos no café, no leite, nos                                                                  e reclama o direito a ser festejado. O segundo seguinte pressente que também tem direito a ser festejado, assim
                               molhos do guisado. Já não precisamos de ir aos moinhos pela calada, comprando pelo                                                              como o segundo seguinte ao segundo seguinte e o segundo seguinte ao segundo seguinte ao segundo seguinte e

                               triplo do preço o pó branco desejado. Há sempre alguém que ganha com a guerra, é                                                                assim sucessivamente. Todos os segundos reclamam os seus direitos, sentem-se discriminados, ninguém os festeja,
                               certo. E são tantos os que perdem, a maioria. Também não garan mos que o tempo não                                                              não entendem que o aniversário seja celebrado e que o segundo seguinte ao aniversário seja esquecido como um
                               volte para trás. D. Quixote o sabia, por isso se a rou aos moinhos com fúria. Lá dentro,                                                        camponês explorado em quintas onde a bebida é sempre pouca. O segundo seguinte aparece nas provas, levanta os
                               protegidos, os agiotas misturavam farinha com areia para que o peso da pobreza fosse                                                            braços, vai à missa, celebra a sua cerimónia, contacta especialistas com o objec vo de perceber a dinâmica do

                               o certo. Está na hora de reabilitarmos a figura do moleiro, é o que vos digo, fazermos                                                           campo, a boca fechada do campo. O batoque da vasilha não pode ser posto se o vinho não  ver fermentado. Caso
                               com ele o que fizemos aos moinhos, cortando-lhes as asas para que as mós se calassem                                                             contrário, abafa no segundo seguinte. Se nos atentarmos, escutamos o vinho a borbulhar no interior da vasilha.É

                               deixando os turistas em paz no alojamento local, rural, frugal. Experimentar o campo                                                            preciso fazer uma mesa redonda, construir um muro em torno da mesa, deitar o muro abaixo depois de delinearmos
                               como quem compra bilhete para um concerto, é um  po de progresso como qualquer                                                                  uma polí ca de reconstrução, de reestruturação. É preciso baixar a balsa para o engaço não ganhar azedo. É preciso
                               outro. E, do mal o menos, às portas da Europa há quem pereça por haver emba do                                                                  retroceder o jacto dos vulcões para dentro das máquinas propulsoras. São ves gios que não facilitam a descoberta

                               contra fronteiras de gelo. Agora é a nossa vez de vender à porta fechada, fugindo ao                                                            da verdade porque a verdade não está nos ves gios mas no que a eles é anterior: cava-se a vinha antes de plantar o
                               fisco com buracos no quintal onde enterrar bilhas de azeite e alqueires de grão e                                                                bacelo, enxofram-se as plantas, dá-se ar às uvas desparrando, esladroam-se as vides dos seus inimigos, adiante.
                               almudes de vergonha. Marquemos o pão com a cruz da nossa guerra, a indolência.                                                                  Os ves gios estão sempre em segredo de jus ça, são uma base de dados em falta, um exame pericial pós-coito.


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